(Por Carlos Francisco Bonard)
Vamos continuar desenvolvendo aspectos do sacramento da penitência.
O NOME
Hoje em dia, até por uma questão de cativar os cristãos diz-se “Sacramento da reconciliação/confissão”. Essa denominação foi se afirmando gradativamente sendo, inclusive, introduzida na linguagem teológica devido à importância, cada vez maior, que era dada a “confissão-acusação” do pecado. É fato, contudo, que essa forma de definir o sacramento é pobre e carece correção vez que só privilegia um dos momentos do sacramento.
Sacramento da Penitência é o nome mais antigo (como demonstraremos) e correto. O termo penitência provém do latim e entre os não cristãos significava “sofrer a pena e a dor[1] (portanto o arrependimento) pelo delito cometido”. Mas nos primeiros autores cristãos o termo aparece como tradução do grego metànoia que significa “mudança de animo-pensamento-atitude interior”, no sentido de mudança radical (“vai e não peques mais”).
A PENITÊNCIA NO AT
No AT é conhecida a prática do jejum que, criando através da “aflição” exterior a interior “aflição da alma” diante de Deus (cf. Lv 6, 29.31; 23, 27.32; Nm 29, 7; Is 58, 3, etc.), ajuda o ser humano a entrar em contato com Deus. Esse jejum pode servir como “preparação” ao encontro (revelação-visão) de Deus (Ex 34, 28; Dt 9, 9; 10, 2), ou como meio de “reparação” do contato interrompido pelo pecado; neste caso o jejum “aplaca” Deus e cessa os flagelos com os quais ele “pune” o pecado (1Sm 7, 6; 2Sm 12, 16s; Jz 20, 26, etc.). Seja como for o jejum sempre estará unido a oração (Jr 14, 12; Esd 8, 21.23; Ne 1, 4, etc.) a ponto de ambos identificarem-se (jejum=oração, e vice-versa); mas muitas vezes, sobretudo quando tem valor “penitencial”, é acompanhado também pela confissão dos pecados:
“Reuniram-se em Masfa, tiraram água, derramaram-na diante do Senhor, e jejuaram aquele dia, dizendo: Pecamos contra o Senhor. Samuel era juiz de Israel em Masfa.” (1Sm 7, 6)
“No vigésimo quarto dia do mesmo mês, vestidos de sacos, e com a cabeça coberta de pó, os israelitas reuniram-se para um jejum. Os que eram de origem israelita estavam separados de todos os estrangeiros, e apresentaram-se para confessar seus pecados e as iniqüidades de seus pais.” (Ne 9, 1)
A Penitência que se exprime no jejum e na oração pública a Deus é considerada válida pelos profetas somente se chegar a ser sinal da interior conversão (metànoia) a Deus.
Sem se alongar no discurso profético sobre a “Penitência-conversão”, podemos perceber que esta se concentra e se concretiza principalmente no “buscar” o Deus da aliança (cf. Dt 4, 29; 1Cr 16, 11; Sl 68, 33; 104, 4; Os 10, 12; Is 51, 1; 55, 6s; Dn 3, 41; …) ou, que é o caso estudado, no “retornar” a Ele (Os 6, 1; Jl 4, 6.8.9.10.11).
A PENITÊNCIA EM JOÃO BATISTA
João Batista representa o mesmo e antigo tema da Penitência-conversão, que em seu anúncio é um movimento que a esta altura deve envolver todos, judeus e pagãos (Mt 3, 7s; Lc 3, 14). Essa Penitência–conversão é preparação do caminho do Senhor que vem (Mc 1, 2-4.7): o sinal dessa preparação está no aceitar o “Batismo de Penitência”, que dará necessária purificação àqueles que dele se aproximam “confessando os vossos pecados” (Mt 3, 6; Mc 1, 5).
“E saíam para ir ter com ele toda a Judéia, toda Jerusalém, e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados”(Mc 1, 5). Do batismo de João faz parte a confissão – declaração dos pecados; o judaísmo daquele tempo conhecia, de fato, várias confissões formalmente genéricas dos pecados, mas também a confissão totalmente pessoal, na qual eram enumerados cada um dos atos pecaminosos[2].
O EVANGELHO DE MARCOS E A QUESTÃO DO PERDÃO DOS PECADOS EM CRISTO
Demonstrado a questão no Antigo Testamento, nos ateremos em Cristo e a problemática com os escribas.
“Alguns dias depois, Jesus entrou novamente em Cafarnaum e souberam que ele estava em casa. (…) Trouxeram-lhe um paralítico, carregado por quatro homens. (…)Jesus, vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: “Filho, perdoados te são os pecados.” Ora, estavam ali sentados alguns escribas, que diziam uns aos outros: “Como pode este homem falar assim? Ele blasfema. Quem pode perdoar pecados senão Deus?”” (Mc 2, 1.3.5-7).
O capítulo 2 de Marcos vai começar a nos apresentar as controvérsias de Jesus com as autoridades[3]. Por ora nos ateremos sobre a questão da paralisia/enfermidade do homem.
De modo análogo à lepra (Mc 1, 40-45), a paralisia era considerada um castigo divino (Cf. Lv 13-14 = sobre a lepra)[4]. No evangelho de João encontramos também a questão do castigo maldição pelo pecado (Jo 9, 2-4) que traz resquícios do decálogo (Ex 20, 5-6)onde fala-se que quem peca contra Deus receberá o seu castigo, que dependendo do tamanho poderá prolongar-se até à terceira ou quarta geração. Também é preciso ter em conta que todo o enfermo era considerado impuro na tradição dos judeus. O que lhes reservava um tratamento preconceituoso.
Vendo a fé deles Jesus não cura o paralítico, mas perdoa seus pecados. O quadro de fé é complexo, mas atendo-se apenas a resposta inicial de Jesus, deve-se ter em conta que aqui ele está tomando o lugar de Deus, isto é, ele está confirmando na prática o que o possesso dissera sobre ele um capítulo antes (Mc 1, 24). E esse é um dado que vai explicar o que virá.
O perdão dos pecados causa escândalo aos donos do perdão (os homens da lei sobre o perdão que, como já dito, já existia no AT) a misericórdia e a justiça são um novo paradigma (Mt 5, 20). Essa situação (perdão dos pecados) quebraria uma engrenagem que justificaria a miséria do povo e se oporia a um universo que havia feito do sagrado “um covil de ladrões” (Jr 7, 11; Lc 19, 46).
Jesus não fala de castigo, mas de perdão. Essa mensagem não foi capitada pelo povo, mas para os escribas a atitude de Jesus é bem clara: Jesus afirma ser o Santo de Deus, pois só Deus podia perdoar pecados (Is 43, 25; 44, 22; Sl 103, 3). De fato a multidão não consegue correlacionar a cura com o perdão dos pecados. No entanto Jesus é direto: se a enfermidade é resultado do pecado, tira-se o pecado e a enfermidade desaparece (Cf. Jo 9, 2-3).
“Estavam ali sentados alguns escribas” … estar sentado, na tradição rabínica significa ter uma certa autoridade, ter um certo poder[5]. Por outro lado quem fica sentado fica a espera, sem pressa tomando conta de algo[6]. É interessante, para visualização, lembrar o cordeiro sentado no trono no livro do Apocalipse. De fato os escribas estavam ali não como peregrinos mas como “fiscais da fé” e aqui temos um novo quadro onde os escribas, ao acusarem Jesus em seus corações[7], formam, o qual serei mais uma vez pontual (para não me tornar pedagogicamente cansativo).
A blasfêmia de Jesus teria conseqüências terríveis na tradição judaica (Lv 9, 10-16; 24, 16; Nm 15, 30), e por isso a resposta de Jesus é imediata ao perguntar “Que é mais fácil dizer ao paralítico: Os pecados te são perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda?” assim os escribas seriam testemunhas oculares e auriculares do que ocorreu. Se é Deus quem machuca (interpretação puramente mitológica que existe ainda hoje) só Ele pode restaurar a saúde (cabendo aos sacerdotes verificar a cura, Lv 13-14). Se só Deus pode perdoar os pecados logo quem perdoa blasfema o nome de Deus (Lv 26, 16; Nm 15, 30). Nesta esteira Jesus diz: “Afim de que saibais que o Filho do Homem tem poder/autoridade, eu ordeno”. Aqui Jesus revela a natureza e origem de sua Messianidade.
Todos estes fatos e mais outros (como o discurso eclesiológico de Mt 18, as parábolas da ovelha perdida, da mulher que perde um dracma e do filho pródigo, todas estas em Lc 15) aliados, esclarecem como era a vontade do Senhor no tocante ao pecado. Essa vontade, e esse poder dado a ele, como Filho do Homem, mas não só a ele como também, por ele (Cristo) “dado aos homes por Deus” (Mt 9, 8) nos fará conjugar a passagem de Mateus 18, 18:
“Em verdade vos digo: tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes sobre a terra será também desligado no céu.”
Jesus, de fato, não remite os pecados (Mt 9, 6; Lc 7, 48) graças a sua divindade, mas é Deus que, através da sua humanidade tornada “sacramento da salvação”, remite os pecados. A ação de Cristo é, com efeito, uma ação sacramental, porque a realidade da salvação-reconciliação chega ao ser humano através do “sinal” daquela humanidade de Cristo na qual Deus “reconciliou consigo” todos os seres humanos. Isso explica, por hora, duas coisas:
- O porquê a Missa, que é um sacrifício, é oferecida toda ao Pai;
- Como, de forma simples, se dá a eficácia de todos os sacramentos[8].
Se essa realidade da salvação-reconciliação que chega ao ser humano em Cristo e por Cristo – essa relação entre o ser humano reconciliado e Deus – era a missão própria de Cristo (Jo 3, 16; Rm 8, 23) quando ele (Cristo) “envia seus discípulos da mesma forma que o Pai o enviou” (Jo 20, 21) – dando-lhes a sua missão – ele nada mais faz do que “confiar-lhes o ministério e a palavra da reconciliação” (2 Cor 5, 18), dizendo-lhes:
“Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos.”(Jo 20, 23)
Esse ministério dado aos apóstolos é precisamente o mesmo aspecto “ministerial” atribuído àquele (Cristo) ao qual é “dado [por Deus] o poder de remitir os pecados”, demonstrando-nos tratar-se sempre, e tão somente, de uma concretização particular e determinada daquela universal “reconciliação” que Cristo operou “uma vez por todas”.
Esse ministério da reconciliação encontrou na Igreja uma dupla aplicação: no Sacramento do Batismo e no Sacramento da Penitência. Sendo que o batismo tem uma potencialidade mais ampla e mais positiva, vez que cria no ser humano, de fato, uma relação com Deus totalmente nova, fundamental e indestrutível.
Mas o Sacramento da Penitência, ou “segundo batismo[9]”, ou “tábua da salvação” (nomes dados por uma antiquíssima tradição dos séculos II-III)[10], na qual há uma remissão dos pecados depois do batismo, não pode perder o seu caráter de reconciliação operada por Cristo, vez que só por meio desta única reconciliação somos justificados (2Cor 5, 21; Rm 5, 9-10).
Chegamos a estas conclusões, ou a melhores entendimentos, pela nossa razão:
“[ O Sacramento da Penitência ] … é “uma segunda tábua após o naufrágio”, a qual pode agarrar-se quem naufragou pelo pecado mortal, enquanto esta nessa vida, podendo fazê-lo, quando e quantas vezes implorar a clemência divina. As partes integrantes da penitência são: a contrição do coração, a confissão oral e a satisfação pelas obras(…)[11]”.
Interessante, inclusive ver opiniões contrárias ao termo “segunda tábua da salvação” como nos fala Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica III PARTE (Questão 84 – A Penitência quanto SACRAMENTO):
“Quanto ao sexto [ artigo ] , assim se procede: parece que a penitência não é a segunda tábua após o naufrágio. Com efeito a respeito do texto; “Proclamam o seu pecado como Sodoma” comenta a Glosa: “Esconder os pecados é a segunda tábua depois do naufrágio”. Ora, a penitência não esconde os pecados, mas antes os revela. Logo, a penitência não é a segunda tábua. Alem disso o fundamento em um edifício ocupa o primeiro lugar e não o segundo. Ora, a penitencia no edifício espiritual é o fundamento conforme a Carta aos Hebreus “Não queremos agora insistir nas noções fundamentais da conversão[12], da renúncia ao pecado[13], da fé em Deus”(Hb 6, 1b). Por isso ela [ a Penitência ] deve proceder ao próprio Batismo conforme que se lê “Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo” (Atos 2, 38). Logo a penitência não deve ser considerada a segunda tábua. Ademais todos os sacramentos são, sob certos aspectos, tábuas[14] (…) Ora, a penitência não ocupa o segundo lugar entre os sacramentos”.
Perceba que se pode discutir nomenclaturas, mas não o fato “Sacramento da Penitência”, conforme será reiterado mais adiante.
Na realidade, 2Cor 5, 18-19, ao afirmar que Cristo “confiou aos apóstolos o ministério e a palavra da reconciliação”, não está pensando apenas no anuncio (“palavra”) e no “ministério da reconciliação” que se exerce sobre os não cristãos, mas tendo em vista, no caso, sobretudo os pecadores já cristãos. Paulo, de fato, escreve aos cristãos de Corinto (2Cor 1,1) dizendo-lhes: “Em nome de Cristo, vos suplicamos: reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5, 20); e prossegue dizendo que “o tempo da salvação” não se fechou com o Batismo , mas dura também “agora”. E é justamente neste tempo que os apóstolos, como colaboradores da missão, exortam para que os cristãos “não recebais a graça de Deus em vão” (2Cor 6, 1-2) que chega a eles através do “ministério da reconciliação”. Ora, por lógica, não há que se falar em reconciliação a um cristão [ batizado ] se não for no contexto do Sacramento da Penitência.
Tendo argumentado na bíblia fecho esse raciocínio voltando a Mt 18, 18 e utilizando o catecismo da Igreja (CIC 1444 e 1445):
“Conferindo aos apóstolos seu próprio poder de perdoar os pecados, o Senhor também lhes dá a autoridade de reconciliar os pecadores com a Igreja. Esta dimensão eclesial de sua tarefa exprime-se principalmente na solene palavra de Cristo a Simão Pedro: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus, e o que ligares na terra ser ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19). “O múnus de ligar e desligar, que foi dado a Pedro, consta que também foi dado ao colégio do apóstolos, unido a seu chefe (cf. Mt 18,18; 28,16-20).”
As palavras ligar e desligar significam: aquele que excluirdes da vossa comunhão, será excluído da comunhão com Deus; aquele que receberdes de novo na vossa comunhão, Deus o acolherá também na sua. A reconciliação com a Igreja é inseparável da reconciliação com Deus”.
Logo a confissão dos Pecados, ou Sacramento da Penitência não foi uma invenção da Igreja Católica ou dos Homens, mas um ministério instituído por Cristo e confiado aos Apóstolos e seus sucessores.
“O sacramento da Penitência oferece ao pecador “uma nova possibilidade de se converter e reencontrar a graça da justificação”, obtida pelo sacrifício de Cristo. Fica assim inserido novamente na vida de Deus e com plena participação na vida da Igreja. Confessando os seus pecados, o crente recebe verdadeiramente o perdão e pode tomar parte de novo na Eucaristia, como sinal da recuperada comunhão com o Pai e com a sua Igreja[15]”.
Concluo com o pensamento de Santo Tomás de Aquino novamente na Suma Teológica III PARTE (Questão 84 – Artigo 1):
“assim como o Batismo purifica do pecado, assim também a penitência. Daí se entende o que São Pedro disse a Simão: “faça penitência, por tanto, da tua maldade”. Ora, o Batismo é um Sacramento. Logo, pela mesma razão, a penitência”.
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[1] Marsili, Salvatore. Sinais do mistério de Cristo, p. 431;
[2] Gnilka Das Matthäusevangelium I, p. 68;
[3] Deste episódio até o capítulo 3, 6 de Marcos encontramos 5 sinais de controvérsias de Jesus com as autoridades que culminarão com a decisão de eliminar Jesus;
[4] Mazzarolo, Isidoro, Evangelho de Marcos, p. 84;
[5] Mazzarolo, Isidoro – Evangelho de Marcos, p. 86;
[6] Mazzarolo, Isidoro – Evangelho de Marcos, p. 86;
[7] Tradução mais correta era que eles não externaram, mas tinham este pensamento no coração (lêb, do hebraico) ou no seu interior – tradução da bíblia de Jerusalem);
[8] Infelizmente a explicação sobre os sacramentos e sua eficácia são extensos e não cabem neste trabalho;
[9] Não que aquele (primeiro e único batismo) se repita, vez tratar-se de um rito distinto;
[10] Marsili, Salvatore. Sinais do mistério de Cristo, p. 441;
[11] Bagnoregio, Boaventura. Escritos Filosóficos-Teológicos, p. 246
[12] Ou “artigos fundamentais” – que servem de base;
[13] Ou “das obras mortas” – realizadas sem a fé;
[14] No sentido de “remédios contra o pecado”;
[15] Paulo II, João. Bula pontifícia Incarnationis mysterium. N 9;